No dia 15 de Março, acordei, aqui na Califórnia, diante de uma avalanche de mensagens chocantes de amigos, postagens em redes sociais e artigos de imprensa sobre o assassinato de Marielle Franco – uma jovem política e ativista dos direitos humanos no Brasil – na noite anterior. Eu não conhecia Marielle, provavelmente porque tenho morado fora do Brasil nos últimos 8 anos. No entanto, o pouco que eu ouvi sobre ela foi o bastante para eu ter a certeza de que ela era única e especial.
Nascida em uma favela no Rio de Janeiro, Marielle era uma exceção à maioria das estatísticas sobre mulheres negras no Brasil. As mulheres negras são as mais afetadas pelo desemprego e ganham bem menos do que qualquer outro grupo da população – em 2007, mulheres negras ganhavam a metade do salário das mulheres brancas e um terço do salário dos homens brancos no Brasil. Marielle fez mestrado em Administração Pública, se tornou uma crítica destemida e contundente da violência policial nas favelas e uma das vereadoras mais votadas em sua cidade natal. Suas conquistas a tornaram uma exceção num país onde mais da metade da população é negra (segundo a classificação oficial do IBGE, a população negra inclui pretos e pardos) mas só 12% têm acesso à educação superior.
No dia 14 de Março, porém, a morte de Marielle se somou a outra tendência perturbadora no Brasil. Enquanto o número de assassinatos de mulheres brancas tem caído consideravelmente desde 2013, o número de assassinatos de mulheres negras cresceu mais de 50% no mesmo período. Sendo eu mesma uma mulher negra e brasileira, eu sei que não é todo dia que a morte trágica de uma mulher negra do sul global se torna notícia nacional ou mesmo mundial. Eu fiquei chocada, triste e profundamente interessada em saber mais sobre Marielle e sua vida.
Naturalmente, o primeiro lugar para eu começar foi a Wikipédia em Português. Eu coloquei seu nome na busca e seu artigo logo apareceu (também encontrei o artigo em Inglês). Ali estava ela! Eu fiquei muito surpresa ao encontrar um artigo de tão boa qualidade e fiquei ainda mais espantada ao ver que seu artigo tinha uma foto linda e com licença livre – o que geralmente não acontece com frequência quando se trata de mulheres negras, especialmente aquelas vindas do sul global, já que elas são geralmente negligenciadas na Wikipédia. Apesar do motivo horrível que me trouxe ao artigo da Marielle naquela manhã, eu tive um sentimento de que as coisas estão mudando para melhor na Wikipédia e no mundo. Eu fiquei feliz ao ver que a vida e os feitos admiráveis daquela mulher negra, brasileira, lésbica, mãe, jovem política e ativista dos direitos humanos, na qual eu me via, já estavam presentes, vivos e reconhecidos na Wikipédia.
O que eu não sabia é que até o dia anterior ao seu assassinato, o artigo da Marielle não existia na Wikipédia. Apesar de alguém ter tentado escrever sobre a Marielle em 2017, o artigo dela foi deletado pelos editores voluntários da Wikipédia em Português. Nessa discussão sobre a eliminação em Junho de 2017, somente um editor, Joalpe, se manifestou a favor de manter o artigo de Marielle vivo no site. Sua voz, no entanto, não foi o suficiente. Um grupo de 6 editores da Wikipédia em Português decidiu que a Marielle Franco não merecia ter um artigo no site, porque ela não atendia ao critério de “notoriedade” da Wikipédia – uma das políticas que ajuda os voluntários a decidir quem deveria ou não ter um artigo na Wikipédia. Eles votaram pela eliminação do artigo de Marielle e fizeram a vida e o legado dela invisíveis no 12º site mais visitado do Brasil e um dos dez sites mais visitados do mundo. De acordo com esse grupo de editores, a vida, o trabalho de Marielle, e tudo que a fez excepcional como uma política local, ativista e símbolo vivo de esperança para milhares no Rio de Janeiro não foram relevantes o bastante para justificar a existência de sua página na Wikipédia. Somente após o seu assassinato, no dia 14 de Março, que Joalpe conseguiu pedir o restauro do artigo na Wikipédia e ter sucesso. E no dia 15 de Março eu consegui ler sobre a vida e a morte dessa mulher admirável.
“Antes de ser executada nas ruas, Marielle Franco foi executada na Wikipédia em Português. Eu acredito fortemente que esses eventos estão relacionados.”
É assim que Joalpe, o Wikipedista que lutou para manter o artigo de Marielle no site antes de seu brutal assassinato, descreve a trajetória frustrante e triste do artigo de Marielle na Wikipédia.
Essa história é bem familiar à muitas de nós que tentamos adicionar conteúdo sobre grupos marginalizados na Wikipédia. A argumentação pela notoriedade das mulheres em discussões sobre a eliminação de artigos é uma tradição anual para muitos organizadores de eventos do mundo todo, que têm como objetivo criar mais artigos sobre mulheres na Wikipédia todo mês de Março. Imediatamente depois de uma editatona do Artes+Feminismos no Uruguai na semana passada, por exemplo, oito artigos sobre mulheres latino-americanas foram nomeados para eliminação na Wikipédia em Espanhol, incluindo a escritora internacionalmente premiada Edda Fabbri, a poeta Alicia Porro e a jornalista e ativista Dolores Castillo.
Os padrões de notoriedade da Wikipédia foram originalmente estabelecidos para evitar que você usasse o site para promover sua banda ou o negócio caseiro do seu avô. A existência de padrões para estabelecer o tipo de conteúdo que pertence ou não a uma enciclopédia é perfeitamente razoável… na teoria. Na prática, entretanto, as diretrizes de notoriedade da Wikipédia requerem a “cobertura significativa de fontes reputadas e independentes do assunto tratado” e existem muitas escolhas subjetivas envolvidas no processo que determina o que é significativo, confiável e independente. Apesar da Wikipédia esforçar-se para ser neutra, a maioria de seus voluntários ainda é composta de homens brancos do norte global – somente 1 em 10 editores são mulheres – e eles carregam sua visão de mundo com eles quando editam a Wikipédia. E considerando que mulheres do sul global tem a tendência de serem deixadas de fora nos nossos livros de história, publicações acadêmicas e fontes de notícias convencionais, mulheres como Marielle têm muito mais chance de serem vistas como não notáveis do que um político branco dos Estados Unidos.
Até elas morrerem. Depois de mortas, em alguns casos, mais fontes são criadas e aquela mulher é então considerada notável (como aconteceu com Marielle)… mas nem sempre. Quando Delta Meghwal, uma mulher Dalit da Índia foi assassinada, os editores da Wikipédia em Inglês decidiram incluí-la na Wikipédia, mas sem criar um artigo sobre ela. Você pode ler mais sobre Delta apenas no artigo intitulado “O caso do estupro de Delta Meghwal”. Em outras palavras, para muitas mulheres negras do sul global, estupro ou morte é a única coisa que nos torna notável, e não nossa vida e nosso trabalho inovador.
De acordo com O Globo, o artigo de Marielle na Wikipédia em Português teve aproximadamente 70 mil visitas no dia seguinte ao seu assassinato. Eu fui uma das muitas pessoas que escolheram confiar na Wikipédia para me informar melhor sobre essa mulher incrível, que desafiou todas as probabilidades que geralmente definem a vida das mulheres negras no Brasil quando se trata de direitos e oportunidades.
Apesar de todas as conquistas de Marielle e de sua trajetória única, ela não foi considerada notável o bastante para ser visível na Wikipédia até que seu brutal assassinato acontecesse. Somente após seu assassinato ter se tornado notícia e ter repercussão internacional é que artigos sobre Marielle foram criados em 16 idiomas nas várias versões da Wikipédia.
O mundo está cheio de mulheres incríveis como Marielle cuja vida e cujas contribuições são profundamente importantes e significativas. Suas histórias merecem ser contadas. Eu preciso e mereço ver outras mulheres como eu na enciclopédia online mais visitada do mundo. E, que sejamos incluídas enquanto estamos vivas, e não só depois de algo horrível acontecer conosco.
No momento em que organizamos o desafio #VisibleWikiWomen para adicionar imagens de mulheres notáveis na Wikipédia no mês de Março, a história de Marielle é um lembrete doloroso do quanto ainda precisa ser feito para aumentar a visibilidade das mulheres na internet. Iniciativas como #VisibleWikiWomen e o trabalho que estamos fazendo na Whose Knowledge?, assim como o trabalho de tantas outras comunidades e parceiros em todo o mundo, ainda são extremamente necessários. O artigo de Marielle deveria ter sido um tributo a sua vida excepcional enquanto ela estava viva. Agora o artigo é um tributo póstumo a tudo o que fez e a todos que representou. Que a luta dela continue a nos inspirar enquanto trabalhamos para colocar as vozes, o conhecimento e as vidas das pessoas e grupos marginalizados no centro da vida social, dentro e fora do mundo online.
Escrito por: Adele Vrana